terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Chapter 2: Debussy (Mãos, Faunos e Livros)

Desce pelos degraus da direita, passa pelas máquinas fotográficas, pelos telemóveis, escada rolante e está no andar certo. Passa por algumas pessoas que vêem atentamente um filme ou uma série que passa, depois vão acabar por comprar. Rock, Fusão, Pop-Rock, Gótico, Industrial, passa por todos os separadores sem sequer olhar para o lado...'Debussy... hoje apetece-me ouvir Debussy.' Entra no cubículo da música clássica, só lá se encontra uma miúda mais ou menos da sua idade, não repara nela, a sua cabeça continua a latejar 'Debussy'. Correu as letras, do fim para o princípio. Quando se aproximava do 'D' reparou na rapariga, também ela procurava alguma coisa. Vendo que a sua proximidade da estante não o ajudava em nada, deu um passo atrás e lá estava, Debussy, na estante mais baixa...baixou-se para agarrar o seu tão desejado CD. No mesmo momento, a rapariga estendeu o braço direito, as mãos cruzam-se, as mão tocam-se...as mão afastam-se bruscamente, como que arrependidas, talvez assustadas.
-Vais mesmo levar o prelúdio? -pergunta ele alarmado
-Estava a pensar nisso.
-Deixas-me só ouvi-lo primeiro? Vim aqui de propósito para o ouvir.
-De propósito? Que paixão! Vamos então fazer uma coisa, se me disseres o que é um fauno, podes ouvir o prelúdio do fauno, senão, podes ouvir quando repuserem o stock.
-Não. Diferente...se me disseres em que data foi composto, eu não o oiço - ripostou ele, cobrindo o disco com a mão para que ela não pudesse ver a data.
-Ah não sabes o que é um fauno! Entre 1893 e 1894.
-Muito bem, não o vou ouvir.
-Mas podes...eu deixo, era uma brincadeira.
-Não quero - diz ele, afastando-se.
-Então olha, um fauno é...
-....uma criatura do 'folklore' nórdico. Metade homem, metade cavalo, usa arco, toca flauta de pã, dança à noite com dríades, pixies, nixies, zixies, tixies, whatever!
-És sempre assim tão brusco?
-Não, só antes de almoço, acordo sempre com 'má cara'.
-Queres ir almoçar, então?

A pergunta apanhou-o em contra-pé. Ele não queria companhia, tinha de usar as regras dela mais uma vez, para não ter de se sujeitar a almoçar com ela. Não que não fosse atraente, simplesmente almoçar era coisa que preferia fazer sozinho. E de atraente não lhe faltava nada. Tinha olhos penetrantes, cabelo liso, solto, mas a pele...a textura da pele, perfeitamente delineada, ponteada aqui e ali por sinais de nascença...a forma do corpo, essa até os seus olhos tentavam evitar, com medo de que nunca mais pudessem ver algo assim, depois que ela se fosse embora. 'Epicurismo/Estoicismo'...lembrava-se das palavras que Fernando lhe tinha dito na última conversa que tinham tido em silêncio.

-Descobre um livro aqui que eu não tenha lido, e vamos almoçar. - Tinha lido 'todos', todos menos um, ela não iria adivinhar. Iria assumir que ele tinha lido todos os grandes êxitos, e deixado 'literatura menor' para trás. Iria parar onde ele queria.
-Coca-cola, a...
-...Investigação Proibída, lido.
-Aquele do russo que foi envenenado.
-Litvinenko, lido.
-Já leste tudo?
-'Pretty much', mas só ainda disseste dois.
-Meu único, grande amor...
-...casei-me.
-Bolas, desisto!
-Não. Vamos almoçar, não li esse, só a primeira frase. Mas conheço a história, podia ter sido eu a escrevê-lo. Mas se o leste, não tenhas pena da mulher. A culpa é dela. Ele seguiu o único caminho que ela lhe deixou.
-Também não o li. E concordo, mas ela gostava muito dele. Subimos?
-Depois de me dizeres o teu nome, não almoço com desconhecidas. Se gostasse tinha ficado com ele.
-Filipa. Às vezes não é assim tão fácil.
-Paulo, prazer. Quando se ama, devia ser. Mas vamos subindo. Ah, o fauno é metade homem, metade bode, e o prelúdio foi composto entre 1892 e 1894. Mas já não me apetece ouvir nem falar de Debussy.

Subiram as escadas rolantes até ao último piso. No caminho, um quiosque da Nicola. Ele pára, pega num pacote de açucar.
"Um dia peço-te desculpa. Hoje é o dia."

(Chapter 3: Janela)

4 comentários:

Marta disse...

Giro, gosto disto aqui.*

Eleanor Rigby disse...

Falámos de Debussy hoje na aula de história de arte (sim, em história de arte e n em música). x)

bonito*

Paulo R. disse...

Adorei! ESte gajo sabe, este Paulo é muito diferente, mas mesmo assim Eu Paulo, gostava de o conhecer. Apenas temos uma coisa em comum, uma miuda chamada Filipa, mas esta parece-me bem mais interessante e menos extrovertida. (Só espero que não esteja algo de gozo entrelinhas)

Maria disse...

Muito bom, indeed.