Chegam ao último andar, pedem o que querem e encontram-se na sala central. Passa uma banda portuguesa num qualquer canal musical no ecrã dos Armazéns. Filipa parece conhecer, pois indica com a cabeça um bom sítio para se sentarem, perto de uma janela, enquanto canta quase inaudivalmente... "You do what they told you, and now you only get what you deserve". Cantava bem, mas não foi isso que chamou a atenção de Paulo. Ele sabia, desde há muito como era mas, sobretudo, o que era aquela expressão. Um misto de ódio, saudade, tristeza. Os olhos mostram a tristeza, quando ficam molhados e ameaçam deixar cair uma lágrima. Os maxilares, apertados com toda a força que podem até ao limite de quebrar, são o ódio, transmitem a força de um sentimento tão negativo que chega a dar vontade de matar. A saudade vê-se num ligeiro torcer da boca para a direita, aliviando os olhos, os maxilares e arrastando o olhar para o chão, como que dizendo "apesar de tudo, fazes-me falta".
Não perguntou nada, detestava quando lhe perguntavam porquês, quandos, ondes... Sentaram-se na mesa que ela apontou. Paulo reparou que uma senhora tinha pensado exactamente a mesma mesa como a ideal para se sentar, pois mudou imediatamente de direcção quando se apoderaram da mesa, e esboçou algum descontentamento por lhe terem roubado aquela pérola entre tantos outros lugares perfeitamente comuns.
A janela tinha vista para os lados do Rossio, podia ver-se o Castelo, a Sé, o Chapitô. Depois do momento anterior, Paulo decidiu desanuviar o ambiente.
-Boa escolha.
-É, gosto de olhar lá para fora.
Paulo, olhou, mas não gostou. O sol que lhe tinha banhado a cara enquanto descia até à Brasileira tinha-se escondido atrás de uma pequena camada de nuvens que em menos de 1 hora conquistaram todo o céu e lhe levaram aquele banho dourado. Tinha pensado este dia de forma completamente diferente. Tinha trocado uma aula de piano, num piano verdadeiro, não a mesa velha da cozinha, por aquele sol...e agora, nem aula, nem sol. Não gostando da vista, tinha de dizer algo.
-Que é aquilo? - perguntou apontando para a Sé.
-É a Sé. Quer dizer, acho que é a Sé. Parece a Sé, e a Sé é o único monumento assim grande para aquele lado. Deve ser a Sé, sim.
Paulo sorriu, a indecisão de Filipa divertia-o. Ela também sorriu.
-Parece que só a idéia de almoçar deixa-te logo mais simpático. Devias sorrir mais, gosto do teu sorriso - disse Filipa.
-O meu verdadeiro sorriso está longe, tal como o teu. Mas falar sobre isso não nos leva até ele.
-Pois não...
Seguiu-se um daqueles silêncios incómodos, quebrado por uma pergunta de Paulo, com o único objectivo de o terminar só porque lhe dava um estanho sentimento de fim daquela 'relação'.
-Que ave é aquela? - perguntou ele apontando com a cabeça para uma gaivota que passava do outro lado da janela, pousando num telhado em frente.
-É...uma pomba.
Paulo não se controlou, aquela tínha-o atingido com força. Riu descontroladamente. Ela não levou a mal, e sorriu.
-OK, o mundo animal não é bem o meu domínio.
-Tudo bem.
-Mas é o quê?
-Uma gaivota - ambos sorriram.
Pela janela, talvez por estar coberto por uma qualquer nuvem, o sol apresentava tons de laranja, que lembravam o pôr-do-sol...
-Olha, o pôr-do-sol deve ser giro hoje...vamos ver? Conheço um sítio. Uma varanda em forma de losango, é linda.
"Não", passou-lhe pela cabeça, mas hoje era diferente, hoje a outra pessoa era diferente, hoje valia a pena, hoje havia uma varanda em forma de losango.
-Vamos - retorquiu ele, mas acho que temos de comer primeiro.
Ainda não tinham tocado na comida...
(Chapter 4: Varanda)
quinta-feira, 31 de janeiro de 2008
terça-feira, 22 de janeiro de 2008
Chapter 2: Debussy (Mãos, Faunos e Livros)
Desce pelos degraus da direita, passa pelas máquinas fotográficas, pelos telemóveis, escada rolante e está no andar certo. Passa por algumas pessoas que vêem atentamente um filme ou uma série que passa, depois vão acabar por comprar. Rock, Fusão, Pop-Rock, Gótico, Industrial, passa por todos os separadores sem sequer olhar para o lado...'Debussy... hoje apetece-me ouvir Debussy.' Entra no cubículo da música clássica, só lá se encontra uma miúda mais ou menos da sua idade, não repara nela, a sua cabeça continua a latejar 'Debussy'. Correu as letras, do fim para o princípio. Quando se aproximava do 'D' reparou na rapariga, também ela procurava alguma coisa. Vendo que a sua proximidade da estante não o ajudava em nada, deu um passo atrás e lá estava, Debussy, na estante mais baixa...baixou-se para agarrar o seu tão desejado CD. No mesmo momento, a rapariga estendeu o braço direito, as mãos cruzam-se, as mão tocam-se...as mão afastam-se bruscamente, como que arrependidas, talvez assustadas.
-Vais mesmo levar o prelúdio? -pergunta ele alarmado
-Estava a pensar nisso.
-Deixas-me só ouvi-lo primeiro? Vim aqui de propósito para o ouvir.
-De propósito? Que paixão! Vamos então fazer uma coisa, se me disseres o que é um fauno, podes ouvir o prelúdio do fauno, senão, podes ouvir quando repuserem o stock.
-Não. Diferente...se me disseres em que data foi composto, eu não o oiço - ripostou ele, cobrindo o disco com a mão para que ela não pudesse ver a data.
-Ah não sabes o que é um fauno! Entre 1893 e 1894.
-Muito bem, não o vou ouvir.
-Mas podes...eu deixo, era uma brincadeira.
-Não quero - diz ele, afastando-se.
-Então olha, um fauno é...
-....uma criatura do 'folklore' nórdico. Metade homem, metade cavalo, usa arco, toca flauta de pã, dança à noite com dríades, pixies, nixies, zixies, tixies, whatever!
-És sempre assim tão brusco?
-Não, só antes de almoço, acordo sempre com 'má cara'.
-Queres ir almoçar, então?
A pergunta apanhou-o em contra-pé. Ele não queria companhia, tinha de usar as regras dela mais uma vez, para não ter de se sujeitar a almoçar com ela. Não que não fosse atraente, simplesmente almoçar era coisa que preferia fazer sozinho. E de atraente não lhe faltava nada. Tinha olhos penetrantes, cabelo liso, solto, mas a pele...a textura da pele, perfeitamente delineada, ponteada aqui e ali por sinais de nascença...a forma do corpo, essa até os seus olhos tentavam evitar, com medo de que nunca mais pudessem ver algo assim, depois que ela se fosse embora. 'Epicurismo/Estoicismo'...lembrava-se das palavras que Fernando lhe tinha dito na última conversa que tinham tido em silêncio.
-Descobre um livro aqui que eu não tenha lido, e vamos almoçar. - Tinha lido 'todos', todos menos um, ela não iria adivinhar. Iria assumir que ele tinha lido todos os grandes êxitos, e deixado 'literatura menor' para trás. Iria parar onde ele queria.
-Coca-cola, a...
-...Investigação Proibída, lido.
-Aquele do russo que foi envenenado.
-Litvinenko, lido.
-Já leste tudo?
-'Pretty much', mas só ainda disseste dois.
-Meu único, grande amor...
-...casei-me.
-Bolas, desisto!
-Não. Vamos almoçar, não li esse, só a primeira frase. Mas conheço a história, podia ter sido eu a escrevê-lo. Mas se o leste, não tenhas pena da mulher. A culpa é dela. Ele seguiu o único caminho que ela lhe deixou.
-Também não o li. E concordo, mas ela gostava muito dele. Subimos?
-Depois de me dizeres o teu nome, não almoço com desconhecidas. Se gostasse tinha ficado com ele.
-Filipa. Às vezes não é assim tão fácil.
-Paulo, prazer. Quando se ama, devia ser. Mas vamos subindo. Ah, o fauno é metade homem, metade bode, e o prelúdio foi composto entre 1892 e 1894. Mas já não me apetece ouvir nem falar de Debussy.
Subiram as escadas rolantes até ao último piso. No caminho, um quiosque da Nicola. Ele pára, pega num pacote de açucar.
"Um dia peço-te desculpa. Hoje é o dia."
(Chapter 3: Janela)
-Vais mesmo levar o prelúdio? -pergunta ele alarmado
-Estava a pensar nisso.
-Deixas-me só ouvi-lo primeiro? Vim aqui de propósito para o ouvir.
-De propósito? Que paixão! Vamos então fazer uma coisa, se me disseres o que é um fauno, podes ouvir o prelúdio do fauno, senão, podes ouvir quando repuserem o stock.
-Não. Diferente...se me disseres em que data foi composto, eu não o oiço - ripostou ele, cobrindo o disco com a mão para que ela não pudesse ver a data.
-Ah não sabes o que é um fauno! Entre 1893 e 1894.
-Muito bem, não o vou ouvir.
-Mas podes...eu deixo, era uma brincadeira.
-Não quero - diz ele, afastando-se.
-Então olha, um fauno é...
-....uma criatura do 'folklore' nórdico. Metade homem, metade cavalo, usa arco, toca flauta de pã, dança à noite com dríades, pixies, nixies, zixies, tixies, whatever!
-És sempre assim tão brusco?
-Não, só antes de almoço, acordo sempre com 'má cara'.
-Queres ir almoçar, então?
A pergunta apanhou-o em contra-pé. Ele não queria companhia, tinha de usar as regras dela mais uma vez, para não ter de se sujeitar a almoçar com ela. Não que não fosse atraente, simplesmente almoçar era coisa que preferia fazer sozinho. E de atraente não lhe faltava nada. Tinha olhos penetrantes, cabelo liso, solto, mas a pele...a textura da pele, perfeitamente delineada, ponteada aqui e ali por sinais de nascença...a forma do corpo, essa até os seus olhos tentavam evitar, com medo de que nunca mais pudessem ver algo assim, depois que ela se fosse embora. 'Epicurismo/Estoicismo'...lembrava-se das palavras que Fernando lhe tinha dito na última conversa que tinham tido em silêncio.
-Descobre um livro aqui que eu não tenha lido, e vamos almoçar. - Tinha lido 'todos', todos menos um, ela não iria adivinhar. Iria assumir que ele tinha lido todos os grandes êxitos, e deixado 'literatura menor' para trás. Iria parar onde ele queria.
-Coca-cola, a...
-...Investigação Proibída, lido.
-Aquele do russo que foi envenenado.
-Litvinenko, lido.
-Já leste tudo?
-'Pretty much', mas só ainda disseste dois.
-Meu único, grande amor...
-...casei-me.
-Bolas, desisto!
-Não. Vamos almoçar, não li esse, só a primeira frase. Mas conheço a história, podia ter sido eu a escrevê-lo. Mas se o leste, não tenhas pena da mulher. A culpa é dela. Ele seguiu o único caminho que ela lhe deixou.
-Também não o li. E concordo, mas ela gostava muito dele. Subimos?
-Depois de me dizeres o teu nome, não almoço com desconhecidas. Se gostasse tinha ficado com ele.
-Filipa. Às vezes não é assim tão fácil.
-Paulo, prazer. Quando se ama, devia ser. Mas vamos subindo. Ah, o fauno é metade homem, metade bode, e o prelúdio foi composto entre 1892 e 1894. Mas já não me apetece ouvir nem falar de Debussy.
Subiram as escadas rolantes até ao último piso. No caminho, um quiosque da Nicola. Ele pára, pega num pacote de açucar.
"Um dia peço-te desculpa. Hoje é o dia."
(Chapter 3: Janela)
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
Chapter 1: A Travessa (Silêncios, Flautas e Malabarismos)
Paulo mora na Travessa dos Fiéis de Deus (Liga a Luz Soriano à dos Caetanos e à de O Século, etc...), embora não seja um deles. Estuda em Lisboa, embora tenha nascido numa pequena vila do interior. Acorda cedo, sai do seu quarto (num prédio velho, verde com ar de ruína, com o tecto podre como alguma da comida que fica em cima da mesa durante horas, enquanto 'estuda' piano, percutindo a dita mesa com os dedos), desce a Luz Soriano, o Calhariz em direcção ao Camões, onde pára na tabacaria, para efectivamente reabastecer o stock de Marlboro que lhe fará companhia durante o dia. Eléctricos, gente, muita gente. Não pessoas, não no puro sentido da palavra. O sol de meados de Janeiro bate-lhe na cara, o tempo melhorou desde o início da semana, está sol. E vai aproveitar esse sol, hoje não vai ao conservatório, não lhe parece que fosse produtivo.
Dirige-se à Brasileira, passando a mão de forma cúmplice pelo ombro de Fernando Pessoa. Entra, pede 2 absintos enquanto começa a desembrulhar o maço de tabaco. Depois da empregada feia, sem nenhum atributo que mereça a sua atenção lhe dar o que pediu, paga, agradecendo. Sai e senta-se na mesa com 'o Fernando', como lhe chama, oferecendo-lhe 1 dos absintos. "Fumas?" pergunta, inclinando o maço, permitindo a'o Fernando' tirar um cigarro. "Oh, que pergunta...já sei que não." Divaga sobre temas do quotidiano que parecem aborrecer o seu ouvinte, ainda que este não profira uma única palavra. Segura o cigarro, que entretanto tirou do maço, entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, e enquanto procura no bolso direito pelo isqueiro, usa os 3 restantes dedos (da mão esquerda) para agarrar o copo de absinto e entorná-lo garganta abaixo. Acende o cigarro. Fernando continua calado, nem tocou no seu copo quando Paulo acaba de fumar o cigarro. "Não vais beber, não é? Então bebo eu...mas ao fim de 1 ano e meio já devias ter aceite algum, qualquer dia há-de querer um, e depois o que fazes? Pode já nem haver. Mas mesmo que haja, que fazes? Vais buscá-lo?" Solta uma gargalhada sarcástica, sobressaltando algumas das pessoas em redor. Pega no copo d'o Fernando', deita rudemente a ponta do cigarro para o chão e entorna mais um absinto garganta abaixo.
"Vou aos armazéns, já que não vou fazer nem tocar música hoje e não se pode ter uma conversa decente contigo, vou pelo menos OUVIR música. Debussy...hoje apetece-me ouvir Debussy."
Desce a Rua Garret em direcção aos armazéns. A rua está apinhada de gente. O habitual rapaz de rastas está lá com os seus malabarismos, acompanhado pela rapariga flautista, e muita mais gente que lhe passa completamente despercebida circula pela rua. Assim que avista o rapaz malabarista, como que numa espécie de ritual, Paulo tira um cigarro do maço e estende-lho com um 'Bom dia', retribuído de uma forma gentil, mas estranhamente agressiva como sempre, talvez adquirida em anos de 'malabarismos' de sobrevivência. "Tu não podes, és flautista" diz ele à rapariga. Ela responde como sempre, com um sorriso sincero, mas um sorriso carregado de tristeza, ou talvez não seja tristeza, era um sentimento que Paulo nunca compreendia...
Chega à entrada dos armazéns. Repara à entrada, olhando para trás, que as luzes de Natal continuam a 'enfeitar' as ruas. Entra pela porta do meio.
(Chapter 2: Debussy)
Dirige-se à Brasileira, passando a mão de forma cúmplice pelo ombro de Fernando Pessoa. Entra, pede 2 absintos enquanto começa a desembrulhar o maço de tabaco. Depois da empregada feia, sem nenhum atributo que mereça a sua atenção lhe dar o que pediu, paga, agradecendo. Sai e senta-se na mesa com 'o Fernando', como lhe chama, oferecendo-lhe 1 dos absintos. "Fumas?" pergunta, inclinando o maço, permitindo a'o Fernando' tirar um cigarro. "Oh, que pergunta...já sei que não." Divaga sobre temas do quotidiano que parecem aborrecer o seu ouvinte, ainda que este não profira uma única palavra. Segura o cigarro, que entretanto tirou do maço, entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, e enquanto procura no bolso direito pelo isqueiro, usa os 3 restantes dedos (da mão esquerda) para agarrar o copo de absinto e entorná-lo garganta abaixo. Acende o cigarro. Fernando continua calado, nem tocou no seu copo quando Paulo acaba de fumar o cigarro. "Não vais beber, não é? Então bebo eu...mas ao fim de 1 ano e meio já devias ter aceite algum, qualquer dia há-de querer um, e depois o que fazes? Pode já nem haver. Mas mesmo que haja, que fazes? Vais buscá-lo?" Solta uma gargalhada sarcástica, sobressaltando algumas das pessoas em redor. Pega no copo d'o Fernando', deita rudemente a ponta do cigarro para o chão e entorna mais um absinto garganta abaixo.
"Vou aos armazéns, já que não vou fazer nem tocar música hoje e não se pode ter uma conversa decente contigo, vou pelo menos OUVIR música. Debussy...hoje apetece-me ouvir Debussy."
Desce a Rua Garret em direcção aos armazéns. A rua está apinhada de gente. O habitual rapaz de rastas está lá com os seus malabarismos, acompanhado pela rapariga flautista, e muita mais gente que lhe passa completamente despercebida circula pela rua. Assim que avista o rapaz malabarista, como que numa espécie de ritual, Paulo tira um cigarro do maço e estende-lho com um 'Bom dia', retribuído de uma forma gentil, mas estranhamente agressiva como sempre, talvez adquirida em anos de 'malabarismos' de sobrevivência. "Tu não podes, és flautista" diz ele à rapariga. Ela responde como sempre, com um sorriso sincero, mas um sorriso carregado de tristeza, ou talvez não seja tristeza, era um sentimento que Paulo nunca compreendia...
Chega à entrada dos armazéns. Repara à entrada, olhando para trás, que as luzes de Natal continuam a 'enfeitar' as ruas. Entra pela porta do meio.
(Chapter 2: Debussy)
Guilt
Volto a Lisboa depois das férias de Natal. Tudo parece igual. Tudo tão estranhamente incómodo e desconfortável.
Entre aulas e conversas...
-Fomos no outro dia ver o Daniel, aquilo está mau. 'Tá mesmo magro, com a barriga ou o fígado ou sei lá tudo inchado.
-Mas ele tem aparecido por aí, ou não?
-Ele 'tá há um mês e meio no hospital, não sabem o que tem... (não ouvi o resto)
Férias, diverti-me, gozei p'a caraças e nem soube de nada. Nem me lembrei de desejar um Bom Natal, senão teria sabido.
Os resultados das análises saíram nesse dia, foi transferido para Lisboa, não deve ser bom sinal.
Mas "não há-de ser nada".
As melhoras.
Entre aulas e conversas...
-Fomos no outro dia ver o Daniel, aquilo está mau. 'Tá mesmo magro, com a barriga ou o fígado ou sei lá tudo inchado.
-Mas ele tem aparecido por aí, ou não?
-Ele 'tá há um mês e meio no hospital, não sabem o que tem... (não ouvi o resto)
Férias, diverti-me, gozei p'a caraças e nem soube de nada. Nem me lembrei de desejar um Bom Natal, senão teria sabido.
Os resultados das análises saíram nesse dia, foi transferido para Lisboa, não deve ser bom sinal.
Mas "não há-de ser nada".
As melhoras.
"Lisbon Revisited" (Álvaro de Campos)
Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul o mesmo da minha infância ,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo ...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
(1923)
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
Ó céu azul o mesmo da minha infância ,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo ...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
(1923)
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